quarta-feira, 24 de outubro de 2012


Resistência católica nos anos de chumbo

Médico e professor, o ex-militante Lurildo Ribeiro Saraiva lança Água Braba, livro que relata os primeiros passos da luta contra a ditadura de estudantes ligados à Igreja




"Eu sei quem são eles. Sei os nomes deles. Vou revelar à Comissão da Verdade.”" O ex-militante estudantil da Juventude Universitária Católica (JUC), que combateu a ditadura de 1964 e inspiraria a organização Ação Popular (AP), e hoje cardiologista e professor da UFPE, Lurildo Ribeiro Saraiva, 64 anos, refere-se aos componentes do temido Comando de Caça aos Comunistas (CCC), responsável por atentados e assassinatos de oponentes do regime militar, como o do padre Antônio Henrique Pereira Neto, em 26 de maio de 1969. Dias antes do sacrifício de padre Henrique, Lurildo esteve com o religioso, que era o pastor nomeado pelo arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara, como assistente da Pastoral da Juventude. A memória preservada dos fatos que antecederam e culminaram no suplício de padre Henrique e dos atos da resistência estudantil à ditadura é que o hoje médico quer relatar à Comissão Estadual da Memória e da Verdade. “"Eles nasceram nas salas de cinema. A primeira manifestação pública foi o trote de Medicina de 1965"”, relembra.
A resistência dos estudantes nas ruas, o protesto no debate da Faculdade de Filosofia do Recife (Fafire) sobre a Aliança para o Progresso, em 1966, com o então candidato a presidente dos Estados Unidos, senador Robert (Bob) Kennedy –- que dois anos depois seria assassinado em Los Angeles -–, os dias de perseguições, ameaças, repressão e mortes de militantes são narrados no livro Água Braba -– Nos Tempos da Ditadura Civil Militar, que tem dom Helder como figura central da resistência estudantil católica à ditadura militar. Os tempos de repressão estão relatadas no livro que o ex-militante lança quinta-feira (27), às 17h, no Espaço Dom Helder da Igreja das Fronteiras, na Boa Vista, Recife, marco da resistência do ex-arcebispo. “"Padre Henrique vinha sendo perseguido 20 dias antes de sua morte"”, revela Lurildo. Fatos pré-Golpe de 64, a deposição do governador Miguel Arraes, as primeiras manifestações nos cinemas, o movimento estudantil nas ruas e o cortejo fúnebre do padre Henrique de 10 quilômetros, da Igreja do Espinheiro ao Cemitério da Várzea, cercado por soldados com baionetas empunhadas, historiam os anos 60.

 TRUCIDAMENTO

Deus lhe pague Chico Buarque

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir 
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir 
Por me deixar respirar, por me deixar existir 

Deus lhe pague 

Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí" 
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir 
Um crime pra comentar e um samba pra distrair 

Deus lhe pague 

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui 
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir 
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi 

Deus lhe pague 

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir 
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir 
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair

Deus lhe pague

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir 
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir 
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir

Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir 
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir 
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir 

Deus lhe pague 




segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O papel da Igreja Católica na ditadura militar

O período de vigência do regime militar (1964-1985) representou um dos momentos mais dramáticos da história do país no que se refere ao desrespeito e à violência contra os mais elementares direitos do cidadão. Depois de assumirem o poder por meio de um golpe de Estado, os militares consolidaram um regime político ditatorial que reprimiu violentamente os movimentos trabalhistas e os grupos de oposição.

A sociedade brasileira foi submetida ao terror de Estado, pois as inúmeras leis de exceção promulgadas ao longo desses anos romperam com a legalidade jurídica ao suprimirem os direitos individuais e constitucionais e as liberdades democráticas.

A tortura, prática cruel e desumana, largamente empregada pelos órgãos policiais contra os cidadãos comuns para extrair confissões de suspeitos, tornou-se uma política de Estado a nortear a repressão contra os envolvidos em quaisquer atividades políticas de oposição ao regime.

Foi nesta conjuntura de extrema violência contra os cidadãos que a Igreja católica assumiu um papel de destaque na luta contra a repressão e a tortura e na defesa intransigente dos direitos humanos, transformando-se na mais importante instituição de oposição à ditadura militar. E para entendermos esta postura da Igreja católica é necessário levarmos em consideração dois fatores: as mudanças nas diretrizes pastorais e teológicas e a ordem política e social estabelecida pelos militares após 1964.

Novas diretrizes pastorais
O período que antecede o golpe de 1964 foi uma fase de muitas mudanças sociais que afetaram diretamente a Igreja. A sociedade brasileira se encontrava em franco processo de modernização e o país se desenvolvia rapidamente deixando para trás seu passado agrário para se tornar uma nação predominantemente urbana e industrializada.

Nestas circunstâncias, a Igreja católica passou a enfrentar a perda de adeptos e a "crise de vocações", ou seja, gradualmente o catolicismo perdia influência na sociedade devido à concorrência de outros credos religiosos (principalmente o protestantismo de massa e a umbanda) enquanto que o sacerdócio deixava de ser um atrativo para os jovens.

A Igreja precisou, então, ajustar-se às mudanças que estavam ocorrendo. No transcurso das décadas de 1950 e 1960, ela vivenciou uma fase de estimulantes experiências pastorais que levou a instituição eclesiástica a se envolver com os mais variados setores, segmentos e classes sociais que surgiram com o processo de modernização social.

Assim, inovadoras práticas de evangelização fizeram com que a Igreja criasse uma série de organizações e entidades visando aproximar-se dos trabalhadores urbanos (por meio da JOC: Juventude Operária Católica e da ACO: Ação Católica Operária), dos estudantes (por meio da Juventude Estudantil Católica: JEC e da Juventude Universitária Católica: JUC) e das classes populares de modo geral (por meio das Comunidades Eclesiais de Base: CEBs). Nas décadas seguintes, surgiram as Comissões de Justiça e Paz (CJP), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

O Concílio Vaticano 2º. (1962-1965)
O processo de modernização vivenciado pela sociedade brasileira era um fenômeno mundial, ou seja, afetava praticamente as mais longínquas e arcaicas sociedades do mundo produzindo profundas transformações na ordem social. Neste contexto, o Papa João 23 decidiu convocar o Concílio Vaticano 2º. a fim de discutir, com os membros da Igreja, qual seria o papel da instituição eclesiástica num mundo marcado por profundas transformações econômicas, sociais e políticas.

As encíclicas papais e as constituições pastorais promulgadas no decorrer desse evento legitimaram uma série de inovações teológicas e pastorais que mudaram os rumos do catolicismo mundial. Nos países em desenvolvimento, como era o caso do Brasil, estas mudanças foram marcantes.

A Igreja católica foi durante séculos uma instituição arcaica, elitista e conservadora, mas se modernizou e se aproximou das classes populares empenhando-se com afinco na promoção da justiça social e defesa dos direitos humanos.

O conflito entre a Igreja e o Estado militar
Quando ocorreu o golpe de 1964, as autoridades mais influentes dentro da Igreja católica no Brasil apoiaram a intervenção militar na política acreditando que o governo do presidente deposto, João Goulart, fosse uma séria ameaça à ordem social vigente devido a suas inclinações supostamente esquerdistas e revolucionárias.

Entretanto, conforme os anos foram passando, ficou cada vez mais evidente que os militares não desejavam transferir, como era esperado, o poder para os civis. Gradualmente, o regime se transformou numa ditadura altamente repressiva que amordaçou a sociedade e começou a eliminar, através de prisões, torturas e assassinatos, todos os focos de oposição.

Porém, à medida que a Igreja ampliava sua inserção junto a outros segmentos sociais, principalmente as classes populares, os seus membros (padres, freiras, bispos, arcebispos, etc.) também se transformaram em alvos da repressão policial. Pouco a pouco, as autoridades mais influentes dentro da Igreja passaram a assumir uma postura mais crítica com relação aos governos militares, opondo-se veementemente à tortura e à violência repressiva. Por outro lado, ao opor-se de modo cada vez mais firme contra a ditadura, a Igreja atraiu diferentes grupos e setores sociais que também estavam sendo vítimas da repressão policial.

domingo, 21 de outubro de 2012


Resenha: A IGREJA CATÓLICA E OS “ANOS DE CHUMBO”

Pode- se dizer que ficou na opinião do homem de religião muitas coisas exercidas pela igreja e pelos movimentos sociais na Década de 50. O golpe militar de 64 restringiu muitos dos movimentos sociais que existiam na época onde havia boa parte de lideres católicos que voltavam- se em sua grande maioria contra os abusos cometidos na ditadura. Vários bispos e padres antes no cerne da ditadura passavam a imagem para a sociedade de ingênuos e conservadores ,logo, mudaram de postura e tornaram o povo mais fraco em relação as suas vontades e sem defesa contra desigualdade social e violência política.

Muitos dos historiadores como por exemplo Diego Silveira não concorda como silêncio da igreja após o golpe, pois a sociedade brasileira ainda acreditava numa retomada á democracia.

Com ascensão dos militares no poder, a igreja católica começou a se distanciar daquele papel que era tradicionalmente cabível e que o legitimava. Nessa época, a igreja católica assumiu posturas contrárias e diferentes na qual a sociedade estava acostumada a ver.
 Tão logo viu frustrada a aposta do CNBB de que houvesse o retorno á democracia no pós-ditadura militar que tão logo os militares não conseguiram calar a igreja. De acordo com pesquisas feitas em algumas fontes da internet que se encontra no final desta postagem, o trabalho da CNBB e de vários grupos da igreja católica, foram fundamentais na luta contra a ditadura militar e a mais longo prazo, fundamental pela redemocratização do país e no consórcio democrático participativo.

A realidade no mundo contemporâneo em busca pela democracia é outra. As oportunidades no ambiente democrático se multiplicaram e se alargaram. Tais expressões de liberdade religiosa já não é de suma importância visto que houve mudanças muito bruscas no mundo contemporâneo social e a hierarquia católica não é mais um símbolo tão importante e valorizado quanto era antes.





REFERÊNCIA: 


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A Teologia da libertação e a Ditadura Militar no Brasil

Já é de nosso conhecimento que a Igreja Católica apoiou o Regime Militar instaurado no Brasil após o golpe de 1º de Abril de 1964. E temos como uma espécie de marco desse apoio a "marcha da família com Deus pela liberdade", que se colocava contra o Presidente em exercício João Goulart e ao "regime comunista" do qual estavam temerosos.
O que começaremos a ver neste post é, como esse apoio começou a ser minado e como determinados membros da Igreja Católica se engajaram na luta contra o Regime Militar impulsionados por uma filosofia então nascente na Igreja e que até hoje gera grande polemica em seus bastidores.
A Teologia da Libertação, surgida no final dos anos 60, fomentada pelo Concílio Vaticano Segundo e pela  Assembléia Geral da Conferencia Episcopal Latino Americana em Medellín que modificou a forma da Igreja de evangelizar e de se colocar ao lado dos mais necessitados. 
No link abaixo é possível ter acesso a um interessante artigo a respeito dessa corrente filosófica dentro da Igreja Católica.
Esta igreja libertadora pensava na defesa dos oprimidos e no levante contra a fome, além disso, lutavam pelo direito à propriedade privada, pelo desenvolvimento social, pelos direitos humanos. A Teologia da Libertação entende que a igreja deve caminhar ao lado dos oprimidos, deve ver a realidade a partir da ótica dos pobres, portanto a  e a prática pastoral tem que seguir essa ideologia.
Nesse período tivemos nomes que se destacaram na luta intelectual contra a ditadura militar entre eles os Freis Dominicanos Betto e Tito que se aliaram a  à ALN (Aliança Libertadora Nacional) comandada por Carlos Marighella 
contra o regime militar. 
O apoio da Igreja ao regime começou a cessar a medida que a violência e opressão aumentou consideravelmente. Porém a Teologia da Libertação não reflete a posição da Igreja de uma forma geral, pois traz consigo ideais marxistas, não apoiados pela instituição ainda hoje.
Abaixo um trecho de documento emitido pela Igreja Católica em 1970 :

"Não podemos admitir as lamentáveis manifestações da violência, traduzida nas formas de assaltos, seqüestros, mortes ou quaisquer outras modalidades de terror. Pensamos primeiramente no exercício da JUSTIÇA, que, sinceramente, cremos estar sendo violentado, com freqüência, por processos levados morosa e precariamente, por detenções efetuadas em base a suspeitas ou acusações precipitadas, por inquéritos instaurados e levados adiante por vários meses, em regime de incomunicabilidade das pessoas e em carência, não raro, do fundamental direito de defesa. Seríamos omissos se não frisássemos, neste momento, nossa posição firme contra toda e qualquer espécie de tortura."
 (Documento da Décima Primeira Assembléia Geral da CNBB, SEDOC, 3 (1970-1971): 85-86 APUD MAINWARING Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.p.130.)

Me parece que uma das melhores representações que temos da participação da Igreja na luta armada são os frades dominicanos que se aliaram à ALN e participaram de manifestações intelectuais, denúncias ao regime entre outras.
Segue a dica de um ótimo filme baseado no livro "Batismo de sangue" escrito por Frei Betto, lançado em 1983. O filme homônimo basicamente, narra a história de religiosos que resolveram se aliar à ALN contra o regime militar.


Referências: 

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.



terça-feira, 16 de outubro de 2012

Projeto Brasil Nunca Mais

 
Projeto Brasil Nunca Mais - Projeto de Pesquisa coordenado pela Arquidiocese de São Paulo

Em agosto de 1979, começava a dar seus primeiros passos, no silêncio necessário da discrição e do sigilo, o Projeto de Pesquisa “Brasil Nunca Mais”. Um reduzido grupo de especialistas dedicou-se, por um período superior a cinco anos, à elaboração de um volumoso estudo.

No mundo todo, a questão da repressão política é quase sempre levantada a partir de denúncias dos atingidos, ou de relatos elaborados por entidades que se dedicam à defesa dos direitos humanos. Emotivos ou equilibrados, são testemunhos que ajudam a revelar uma história oculta. Mas tropeçam, às vezes, na desconfiança daqueles que alegam serem depoimentos tendenciosos, por partirem de vítimas que, na sua maioria, teriam motivações políticas.

A pesquisa “Brasil Nunca Mais” (BNM) conseguiu superar esse dilema, estudando a repressão exercida pelo regime militar a partir de documentos produzidos pelas próprias autoridades encarregadas desse controvertida tarefa. Reunindo as cópias da quase totalidade dos processos políticos que transitaram pela Justiça Militar brasileira entre abril de 1964 a março de 1979, especialmente aqueles que atingiram a esfera do Superior Tribunal Militar (STM).

Foram obtidas, por inúmeros caminhos, cópias de 707 processos completos e dezenas de outros incompletos, num total que ultrapassou um milhão de páginas imediatamente micro filmadas em duas vias, para que uma pudesse ser guardada, sem riscos, fora do país.

Sobre o outro conjunto de microfilmes uma equipe se debruçou durante cinco anos, produzindo um relatório, chamado de Projeto A, de aproximadamente cinco mil páginas, contendo informações impressionantes. Cópias restritas do Projeto A foram distribuídas entre universidades, bibliotecas, centros de documentação e entidades voltadas para a defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior.

Estabelecendo 15 de março de 1979 como data-limite do período a ser investigado, os responsáveis pela pesquisa procuraram assegurar um mínimo de distanciamento histórico em relação à repressão política enfocada. E, mais que isso, evitaram apreciar fatos ainda em desenvolvimento.

No livro Vigiar e Punir, o pensador francês Michel Foucault já havia mostrado ser possível reconstruir boa parte da história de uma época através do processo penal arquivado no Poder Judiciário de cada país. A verdadeira personalidade do Estado ficava ali gravada, sob a forma de sentenças judiciais determinando torturas, esquartejamentos em praça pública, normas de vigilâncias carcerária, castigos ao corpo, punição ao espírito.

Recuperando a história das torturas, dos assassinatos de presos políticos, das perseguições policiais e dos julgamentos tendenciosos, a partir dos próprios documentos oficiais que procuravam legalizar a repressão política daqueles quinze anos chegou-se a um testemunho irrefutável.

A denúncia que uma vítima de tortura faz perante uma entidade de direitos humanos não questiona tão frontalmente as autoridades governamentais, quanto à verificação de que a mesma fora apresentada em tribunal, confirmada por testemunhas e até mesmo registrada em tribunal, registrada em perícias médicas, sem que daí resultasse qualquer providência para eliminar tais práticas, responsabilizando criminalmente seus autores.

O relatório começa situando, como estudo de referência, a evolução das instituições políticas do Brasil entre 1964 e 1979, partindo dos antecedentes do regime militar e completando-se com a montagem do aparelho de repressão erguido sobre o alicerce da Doutrina de Segurança Nacional.

Em seguida, são apresentadas as características metodológicas da pesquisa, a classificação dos processos quanto à natureza dos atingidos (organizações de esquerda, setores sociais e atividades) e explicados os instrumentos que serviram para a coleta de dados. Todas as informações, recolhidas por meio de dois questionários, foram armazenadas e processadas por computadores que forneceram, com programas especiais, listagens e estatísticas, cujos disquetes foram postos a salvo juntamente com os microfilmes. Nesse capítulo, é também explicada a constituição de um acervo separado de dez mil documentos políticos que estavam anexados aos processos, que será de grande valia para qualquer pesquisa futura sobre o movimento sindical brasileiro, a luta dos estudantes, a história das organizações clandestinas de esquerda.

O terceiro passo do relatório é uma discussão pormenorizada dos resultados da pesquisa no campo mais estritamente jurídico, mediante comparação entre o que as leis – mesmo as leis criadas pelo regime militar – determinavam e o que realmente aconteceu nos inquéritos e processos judiciais. Discutida, antes, a legitimidade duvidosa das várias Leis de Segurança Nacional e demais códigos baixados pelas autoridades militares, estuda-se, nesse item, a rotina do descumprimento das leis sempre que se tratasse de agravar o arbítrio sobre os investigados.

Segue-se, então, uma impressionante seqüência de transcrições de depoimentos relatando torturas, num total aproximando de dois mil e setecentas páginas datilografadas. São denúncias firmadas em juízo, com nomes de torturadores, de centros de sevícias, de presos políticos assassinados, de “desaparecidos”, de infâmias sem conta.

Desde seus primeiros passos, em agosto de 1979, até sua conclusão, em março de 1985, o Projeto de Pesquisa “Brasil Nunca Mais” não teve outro objetivo que não fosse o de materializar o imperativo escolhido como título da investigação: que nunca mais se repitam as violências, as ignomínias, as injustiças, as perseguições praticadas no Brasil de um passado recente.

O que se pretende é um trabalho de impacto, no sentido de revelar à consciência nacional, com as luzes da enuncia, uma realidade obscura ainda mantida em segredo nos porões da repressão política hipertrofiada após 1964. Para eliminar do seio da humanidade o flagelo das torturas, de qualquer tipo, por qualquer delito, sob qualquer razão.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

"Operação Condor vai receber uma enorme atenção", diz membro da Comissão da Verdade brasileira

Na primeira semana de setembro, os membros da CNV (Comissão Nacional da Verdade), instalada em março deste ano para apurar violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com destaque para o período da ditadura militar (1964-1985), participaram de um seminário em Brasília para debater e conhecer melhor as experiências de outras comissões da verdade nas Américas.

Um dos sete membros nomeados para a CNV pela presidenta Dilma Rousseff, Paulo Sérgio Pinheiro disse, em entrevista ao Opera Mundi, que um dos focos das investigações da comissão será a Operação Condor, a articulação entre os aparelhos repressores de Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. “Na Operação Condor, o Brasil foi muito esperto, não deixou muitas marcas, não assinava acordos informais nesse sentido”, e por isso a cooperação com esses países será fundamental para conseguir informações, afirmou.

Doutor em Ciência Política pela Universidade de Paris, Pinheiro foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso e integrou o grupo de trabalho nomeado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que preparou o projeto de lei da Comissão Nacional da Verdade.

Opera Mundi: O que a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, que está iniciando seus trabalhos este ano, tem a aprender com outras experiências semelhantes na América Latina?
Paulo Sérgio Pinheiro: Primeiro, a nossa comissão é a primeira do século XXI, todas as anteriores foram no século XX. Em relação às mais antigas, como as de El Salvador, Guatemala e Argentina, muitas tecnologias e meios de difusão comuns atualmente, como internet, redes sociais, celular, telefone com câmera fotográfica, não existiam, então a nossa comissão fica em um outro patamar técnico.

UNIC Rio/Divulgação
É evidente que cada uma das 40 comissões de verdade que já existiram no mundo, desde os anos 1990, tem características próprias. O que une todas elas é essa questão do direito à memória e à construção de uma verdade que os regimes autoritários negaram ou se recusaram a enfrentar. Entre as experiências que nós debatemos nesse seminário, a de El Salvador e da Guatemala são muito específicas, porque elas foram realizadas por iniciativa da comunidade internacional e no pós-conflito, depois de guerras civis muito importantes. A do Peru também, porque era quase uma guerra civil entre o Sendero Luminoso e o governo ditatorial do [presidente Alberto] Fujimori.

Finalmente, a [comissão da verdade] mais próxima de nós é a do Paraguai, porque ela ocorre também depois de um longo período de ditadura, quase o dobro da nossa ditadura militar. Das experiências que nós debatemos, não só por ser mais próxima em termos temporais, mas também em termos do conteúdo, a do Paraguai é a mais próxima, também a do Uruguai guarda muitos pontos de contato. Nesse seminário, se discutiu mais sobre essas quatro comissões, Argentina, Guatemala, El Salvador e Peru, mas tratamos de outras também, como a experiência da África do Sul e a do Chile. Um ponto importante que queremos investigar é a colaboração entre os aparelhos repressivos de Brasil, Uruguai, Argentina e Chile para extermínio e prisão de militantes, a chamada Operação Condor.

OM: O que vocês pretendem aproveitar, dessas experiências, no trabalho da Comissão da Verdade no Brasil?
PSP: Por exemplo, experiências de audiências públicas, a confidencialidade nas investigações criminais, a importância das recomendações depois da publicação do relatório da comissão, a articulação com a universidade e com os diversos grupos da sociedade civil. Tudo isso foi muito interessante, especialmente porque as entidades que patrocinaram o seminário com o Ministério das Relações Exteriores, o Centro Internacional para Justiça de Transição, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos e o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul também não tratam só desses países que estavam mais presentes, mas do conjunto das experiências de comissões da verdade no continente.

OM: Além de Uruguai e Paraguai, as comissões da verdade na Argentina e no Chile também não se aproximam do trabalho que deve ser feito pela comissão brasileira, pois também foram criadas após ditaduras militares?
PSP: A da Argentina foi a primeira de todas, é a mãe das comissões da verdade. Na apuração e na publicação dos resultados, ela se aproxima muito. O que não se aproxima de nós é o momento atual chileno e argentino, onde está havendo uma responsabilização dos autores de violações dos direitos humanos. A nossa comissão tem o poder de documentar as autorias e as circunstâncias das violações, mas nós não somos um tribunal, aliás nesses países também não era um tribunal. O que ocorreu no Chile e na Argentina [em relação aos julgamentos] foi depois que os trabalhos das comissões terminaram.
Carlos Latuff


OM: Tanto no Chile quanto na Argentina houve maior resistência inicial dos militares, que conseguiram garantir, em um primeiro momento, que os trabalhos das Comissões fossem limitados (a Comissão de 1991 no Chile tinha poderes muito limitados, e na Argentina os governos civis decretaram leis de anistia aos militares). No entanto, depois esses entraves foram revogados e os trabalhos de investigação, julgamento e punição dos agentes do Estado foram retomados e estão, ainda hoje, em andamento, certo?
PSP: Esses desenvolvimentos não estavam previstos nos relatórios [das comissões], porque os relatórios abrem um procresso dinâmico. Mas nós ainda nem fizemos o relatório, não me cabe fazer futurologia com o que vai acontecer depois. No momento, só estou preocupado com como nós vamos terminar o trabalho em 21 meses, porque três meses já se passaram.

OM: E em relação à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), no julgamento de 2010, de manter a constitucionalidade da Lei de Anistia? Não interfere?
PSP: Sim, completamente. Primeiro, porque nós não debatemos isso. Em segundo lugar, isso não ajuda nem atrapalha, porque a comissão não está sujeita às mesmas restrições jurisdicionais que o sistema judicial brasileiro está. Nós já temos poderes suficientes para trabalhar. O primeiro é que a comissão tem o poder de convocar qualquer cidadão ou cidadã brasileira para depor, se não vem, nós denunciamos ao Ministério Público Federal para abertura de um inquérito.

Em segundo lugar, nós temos acesso a qualquer documento que nós julgarmos relevante para nós. Para dar um exemplo, no Ministério das Relações Exteriores nós estamos tendo acesso a todos os documentos secretos, no Itamaraty não se queimou nenhum documento, há quatro toneladas de documentos que podemos examinar.